terça-feira, abril 11, 2006

descoordenação labial

no outro dia vi na tv uma reportagem sobre o encerramento de um centro de saúde numa terriola qualquer no fim do mundo pouco antes de chegar a trás-os-montes.

como em qualquer aldeia dessas zonas esta medida afectou principalmente os mais idosos, ou seja, mais ou menos 100% da população.

no dia em que a decisão foi executada, a revolta apoderou-se dos pré-mortos. e do nada surge, uma manif de octagenários.

palavras de ordem eram muitas e cada um dizia a sua, a surdez e a senilidade dificultam os gritos em uníssono.
ainda assim a dada altura ouviu-se "mesmo sem dinheiro, os velhinhos estão primeiro, mesmo sem dinheiro os velhinhos estão primeiro"

eram 9.

vozes enfraquecidas, desgastadas por anos e anos de sofrimento... a ditadura de salazar, o reinado de d.manuel, as invasões francesas, e apesar dos esforços ao fim de 13 segundos de manif já 2 estavam a pedir oxigénio, outro destravou a cadeira e nunca mais ninguém o viu, e 6 que sofriam de parkinson em último grau não paravam de dizer adeus para as camaras da tv.

sensibilizado, o repórter não deixou passar em claro tamanho gesto e começou a narração da reportagem com a seguinte frase,"pacificamente, os manifestantes mostravam o seu descontentamento!"

a escolha da palavra pacificamente para classificar uma manifestação de pessoas com idade para serem tetra-avós do meu pai era de facto a única palavra possível.

de seguida a entrevista a uma das anarcas presente, maria das dores era o seu nome e começou por dizer
-"eu sou solteira, tenho 85 anos e não tenho quem cuide de mim"

como isto parecia o início de um anúncio secção "ela procura ele ou uma coisa qualquer que mexa", peguei no telemóvel mas em vez de um número de telemóvel vi... maria das dores.

criatura estranha, jeito desengonçado, no rosto uma vida inteira de trabalho, os momentos bons e os maus. estórias de dor e de conquista.

mas maria das dores não era só isto.

maria das dores era velha, era feia, era labialmente descoordenada e tinha um bigode que dava para esconder um cavalo.

e eu sem saldo.